Texto Sarah Ahmed | Tradução Bruno Ferreira
“O Vital é a minha cara”, diz Marta Soares do Casal Figueira. Juntamente com o seu falecido marido, António Carvalho, Soares não só resgatou esta humilde e autóctone casta branca de Lisboa da escuridão como a fez reluzir.
Então como é que Soares descreve a Vital? As palavras surgem em catadupa. Afinal de contas, esta grande pensadora conhece-se bem. “Produtiva, forte, dinâmica. Uma amante do tempo e do espaço. Selvagem como a vinha. Fresca e austera, mas também complexa. Quando a começamos a conhecer, entramos no seu mundo.”. Através de garrafa luminescente de Casal Figueira António Vital 2013, Soares proporcionou-me um vislumbre privilegiado do seu mundo de paradoxo e património.
De paradoxo
Por ser “nascida em cimento”, Soares não tinha como objectivo produzir vinho como tinha Carvalho, cuja família era viticultora há gerações, em Vermelha, perto de Torres Vedras, na região vitivinícola de Lisboa. Pelo contrário, a antiga aluna da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa encontrou a sua identidade na arte. Quando conheceu Carvalho em 1999, Soares estava na iminência de partir para Nova Iorque para dar seguimento à sua carreira, inicialmente com o apoio da Fundação Luso-Americana e, a longo termo através do Programa Fullbright que tinha aprovado o seu portfólio; só precisava de finalizar a documentação.
Apesar de ter tido sucesso com as suas exposições, atira em reflexão, “Acho que era muito nova e depressa apareceu a pressão sobre mim própria; sabia que algo precisava de mudar”. Soares perguntou aos amigos se conheciam algum sítio onde ela pudesse estar em paz para pensar antes de partir para os Estados Unidos. Falaram-lhe de “um amigo louco com uma quinta”, perto de Torres Vedras, que provavelmente teria espaço para ela montar um estúdio.
Este ‘amigo louco’ era Carvalho, que, tendo estudado com viticultores franceses na Escola de Práticas Agrícolas de Montpellier, estava a arar um solitário sulco, produzindo vinho com qualidade e terroir-driven num terreno de propriedade familiar (Casal Figueira) com 50 hectares, 15 dos quais ele plantou com vinha em 1990. Como se isto não fosse suficientemente diferente da tradição lisboeta focada na quantidade, os seus vinhos eram cultivados biodinamicamente e incluíam as castas francesas Marsanne, Roussanne, Petit Manseng e Semillon, além das castas locais Fernão Pires e Arinto.
Soares recorda vivamente, “quando lá cheguei, deparei-me com este sujeito obstinado, com um chapéu, a podar as vinhas, uma por uma, de maneira repetitiva, todos os dias, de manhã até ao fim do dia. Ela olhava e tratava cada vinha como de uma escultura individual se tratasse; quase como o trabalho de um artista – é preciso moldá-la (a escultura) todos os dias, todos os anos, e aí será aquilo que queres que seja.”
Quando Soares e Carvalho partilhavam os frutos do seu trabalho no final daqueles longos dias, Soares encontrou a resposta à questão pertinente que tinha “O que é que motivava este homem?”. Descrevendo o objectivo dele, o vinho, como “muito forte”, diz, “era possível apreciar todo o trabalho”. Soares também se apercebeu que a “ladainha” de poda de Carvalho, com o objectivo de produzir vinho, paradoxalmente também lhe apelava pois “parecia relaxante”, contrastando com a vida de um artista em que “apenas construímos coisas, dia após dia, sem saber exactamente o que estamos a fazer”. Acrescenta ainda, para um viticultor, “nunca se está no comando porque a natureza dita o tempo que se gasta todos os dias, ao passo que um artista deve decidir se vai pintar ou não… tudo é nossa responsabilidade”.
Por outro lado, observa, quando se trabalha com a natureza e materiais orgânicos (o oposto de um artista que trabalha com materiais artificiais “para que possam controlar tudo”), temos de estar preparados para tudo o que acontecer. Através de Carvalho ela veio a perceber que, “se formos destemidos, podemos ver [trabalhar com a natureza] que é uma aventura e redescobrir a paixão diariamente”.
Estes paradoxos e pontos divergentes do seu próprio trabalho fizeram com que Soares se interessasse. Apaixonando-se por Carvalho e, com “tanto para aprender… especialmente em relação à vertente prática”, desistiu dos seus planos em Nova Iorque para ficar com Carvalho e, quando pudesse, o ajudar nas vinhas e na adega.
Por outro lado, diz que a sua boa vontade e energia em relação ao trabalho dele, conferiram força a Carvalho para continuar, mesmo as pessoas não acreditando no seu estilo de vinho. Foi Soares que surgiu com o que descreve ser “o primeiro rótulo na língua Casal Figueira”. O rótulo do branco ostenta o nome da propriedade, descrição “vinho branco”, contando ainda com o esboço da figueira que está ao lado da adega que a própria desenhou. Explica que “foi tudo por causa da simplicidade – atraindo a atenção para o conteúdo e não para o aspecto exterior”.
Ainda assim, também por estarem à frente do seu tempo, Carvalho e Soares foram incapazes de obter sucesso no negócio e entraram em falência em 2003. A família de Carvalho recuperou a quinta, período durante o qual o casal trabalhou para o enólogo espanhol Telmo Rodrigues num projecto de recuperação das vinhas velhas Godello, na Galiza. Quando, no ano seguinte, o pai de Carvalho faleceu, voltaram de Espanha e trabalharam uma vez mais na quinta Casal Figueira até a venderem em 2007 para pagar as dívidas da família.
Soares diz que esta foi uma altura difícil porque sabiam que a quinta teria eventualmente que ser vendida, mas “foi o nascimento de um ‘novo’ Casal Figueira: destemido, mais forte que nunca”. Porquê? Porque Carvalho reconheceu que “só é possível fazer grandes vinhos se nos cingirmos às vinhas e ficarmos lá com elas. É preciso estar em casa. Só dessa forma é que as conseguimos perceber e tirar o máximo delas. Isso é a essência da biodinâmica: ficar lá e percebê-la”.
De Património
Foi então, por isto, que o casal decidiu ficar em Lisboa e procurar as suas castas autóctones. Contrastando com o ano que passaram em Espanha, Soares diz, “Era onde podíamos estar os dois, todos os dias. A amar-nos um ao outro, a amar as vinhas, a amar os nossos filhos. Amar algo requer um cuidado diário”. Além disso, “A nossa região era também o sítio em que já tínhamos algum conhecimento do clima, solo, comportamento das plantas, insectos e falibilidades naturais”.
A procura levou Carvalho atrás no tempo, de volta às viagens difíceis, Serra de Montejunto acima, a norte, com a ama que ia visitar os parentes, agricultores. E foi então que o casal encontrou a fonte do aclamado vinho Vital Casal Figueira – quatro talhões de vinhas velhas em calcário com 50-100 anos, 250-400m acima do nível médio das águas do mar, algo incomum em Lisboa. Estas parcelas eram propriedade (e o seu nome em homenagem) dos primos da ama de Carvalho – Acácio, Cremilde, Humberto e Pedra – que, para além de venderem as uvas à cooperativa local, também sempre fizeram o seu vinho daquelas uvas. Descrevendo-o como “muito oxidativo, muito estranho”, Soares sorri interiormente com orgulho quando se regala com o facto “António teve a visão para perceber o potencial da casta”.
Foi, acrescenta Soares, o projeto perfeito, porque, vivendo nas proximidades e com a adega a poucos passos de distância, poderiam alcançar o objectivo que tinham, de obter “uma expressão muito clara das uvas”. Aponta, “a proximidade é a palavra principal. Se existir uma grande distância entre a vinha, a adega e o local onde vivemos, há uma falta de qualidade na vida e na frescura das uvas. Se se demorar horas para chegar à vinha, não se vai lá ficar muito tempo, e então é preciso contratar pessoas”.
No entanto, as angústias do casal estavam longe de estar terminadas. Em 2009, Carvalho desmaiou e morreu de ataque cardíaco enquanto pisava as uvas. Tinha apenas 43 anos. A meio da colheita e com dois filhos pequenos para sustentar, Soares diz-me que apenas teve direito a 3 segundos de hesitação sobre se iria continuar com o projecto ou não. Uma hesitação, acrescenta, que resultou única e exclusivamente de se questionar se conseguiria fazer jus ao homem que descreve como sendo “um enólogo incrível…o melhor em todo o Portugal”.
Pergunto se, continuar com o Casal Figueira foi uma maneira de homenagear a visão de António e ficar perto dele? Para Soares o propósito foi muito maior. Ela descreve a situação como “uma epifania da vida, não sobre a arte mas sim sobre a prática…sobre nos relacionarmos directamente com as coisas que fazemos, descartando a teoria e deitando mãos ao trabalho.” – uma abordagem diferente à vida, que aprendeu com Carvalho. Apesar de tudo, consegue olhar para trás, para a morte de Carvalho, e descrevê-la como “uma coisa feliz porque ele deu a vida por algo em que acreditava e foi o seu coração que o falhou e não a vinificação ou a terra”.
De igual motivação, outro objectivo ainda maior, que é o de preservar o património cultural português de vinhas. Para Soares, este transcende mesmo o vinho, que descreve meramente como “um passo necessário para ter uma expressão de vinhas”. “Imagine”, diz, “quando se tem uma exploração agrícola com vinhas velhas de 100 anos, quantas pessoas morreram e a vinha ainda lá está. As vinhas são um registo do tempo e tempo é cultura – devemos cuidar e ter isto bem presente”.
Embora Soares reconheça que “este patrimônio cultural tem um valor incrível em Portugal”, também está ciente de que ao contrário de França, “onde a arte, os vinhos e a literatura estão juntos”, a alta cultura e a agricultura são campos completamente distintos aqui. Acredita apaixonadamente que deve haver uma conexão entre “o que é básico na vida – a produção agrícola – e o que acontece na arte”. Em vez disso, lamenta, “Estamos a procurar noutro lugar, lá fora, nunca olhando para dentro, nunca olhando para aqui”.
Eu consigo relacionar-me com os seus comentários à recente história de vinificação de Portugal, onde poderia ser perdoado pensar que apenas um punhado de uvas nativas, não necessariamente locais, merecem atenção. No entanto, tenho o prazer de ver uma nova geração de produtores como Carvalho e Soares fechando o círculo e abraçando o melhor da tradição. Não apenas castas autóctones, mas também técnicas de viticultura e enologia. Vejam os Baga Friends, ou Rita Marques’ Conceito Bastardo, André Manz’s Jampal e o trabalho de António Maçinta nos Açores ao ressuscitar as castas locais Arinto dos Açores e Terrazntez do Pico.
Voltando ao Vital, um vinho que Soares classifica como um vinho monovarietal, que representa não só a sua cara, mas também “uma riqueza de autenticidade…algo tão simples que não tem preço”. Conclui “é isso que adoro em Portugal e para mim é isso que o Vital representa”.
João
O António branco foi para mim uma descoberta recente, se já o bebia com prazeirosa cerimónia, depois deste artigo vou conseguir apreciá-lo ainda melhor.