Texto João Barbosa
O título pode parecer estranho para alguns leitores, mas são dois conceitos bem definidos, sedimentados e antigos da pintura. Nas línguas latinas o termo usado é natureza-morta, enquanto em inglês e alemão é ainda-vivo (still life – stilleben), e aplica-se a obras onde se apresentam alimentos, elementos naturais e, por vezes, animais. Contudo, outros objectos podem ser acrescentados.
Um outro conceito é a vanitas, muitas vezes ligado às naturezas-mortas, e aborda a insignificância ou perenidade da vida, do que de nós resta após a morte, a vaidade (vanitas) derrotada…
Ontem, após o jantar, descansava com um copo de vinho e olhava para uma natureza-morta do meu pai (Manuel Jorge – 1924 a 2015), de que não tenho fotografia, e mergulhei em Paul Cézanne – que tanto apreciava. Com o passamento do meu pai próximo (Fevereiro do ano passado) ocorreram-me as vanitas – que saiba não criou nenhuma – e a razão de existirem enquanto motivo artístico.
A vanitas é mais óbvia. Já as naturezas-mortas me parecem mais complexas, não podendo deixar de notar as duas formas de as nomear: morta ou ainda viva. Os alimentos que nos mantém vivos, o vinho que nos dá brilho e a sensação de algo que ficou por fazer – levantar a mesa, terminar de descascar a peça de fruto, terminar o copo de vinho, objectos tombados por alguma pressa súbita.
Note-se que os alimentos surgem frescos e apetitosos, não apresentando sinais de degradação. Se, colhidos e caçados ou pescados, estarão mortos. A frescura, transmita pelos brilhos, desmente a morte. Portanto, a verdade estará entre os dois conceitos, o latino e o germânico.
Estas obras são uma janela para os prazeres da mesa de outrora e do autor. Note-se, que durante séculos, passou-se muita fome, que alimentou revoltas, doenças, morte precoce ou esperança de vida que nos espantará – milénios em que chegar aos 40 anos eram um feito, em que a taxa de mortalidade à nascença e na infância era imensa.
Por isso, estas obras reflectem o prazer deslumbrante da comida e da festa, mas também da solidão e melancolia. Olhando com atenção pode entender-se que a gula de outrora não é muito diferente da actual.
O açúcar, produto tão acessível, era para os ricos. Para se ter um exemplo, numa escavação arqueológica dum enterramento podem distinguir-se facilmente os ricos dos pobres. Uns têm cáries, porque podiam pagar o doce, e outros os molares mais gastos, por comerem pão de farinhas piores, com mais resíduos da pedra da mó.
Por isso, o doce surge abundantemente como fruta. Uvas, limões e laranjas são, provavelmente, as mais citadas… talvez ainda a romã. Contudo, a pastelaria foi igualmente pintada.
Josefa de Óbidos pintou várias naturezas-mortas com bolos. Lubin Baugin «retratou» um despojado quadro, com garrafa e copo de vinho e rolos de bolacha, conhecidos como língua-da-sogra. O pão foi imensamente mostrado, ou não fosse a base alimentar dos séculos passados no Ocidente.
Nos prazeres encontram-se ostras, lagosta, sapateira, peixes, carnes… e vinho! Porém, há uma natureza-morta «deliciosa», de Juan Sánchez Cotán, de couve, abóbora, pepino e marmelo (?)… devia estar de dieta. Paul Cézanne retratou cebolas. O mestre Abel Manta escolheu um safio luzidio que, só de ver, transmite a sensação olfactiva da trimetazidina – o nitrato responsável pelos cheiros dos pescados e que me revolve as entranhas e faz vomitar… deixe-vos sem mais intimidades. Mas o bicho é lindo!
Como não podia deixar de ser, o vinho corre abundantemente, indicando o deleite que ainda hoje nos sacia a alma. Note-se que o vinho era uma fonte acessível de calorias, que os pobres podiam beber – tantas vezes alimentou os camponeses e operários portugueses e até há bem pouco tempo.
No entanto, o vinho mostrado não era para a garganta do trabalhador braçal. Apresenta-se acompanhado por uma garrafa (luxo) e em copos finos, do caro cristal, certamente – até o vidro era caro. Outras vezes, os cálices são de metal trabalhado. Faço uma nota, a cerveja foi também muito escolhida.
Se hoje os consumidores preferem os tintos (confesso que não consegui dados actualizados), o vinho branco foi, aparentemente, na pouco fiável memória, mais escolhido pelos pintores. Há muitos claretes, tão distante dos retintos que hoje agradam a tantas pessoas.
Disse bastarem as intimidades, mas esta tem fundamento. O meu pai era apreciador de vinho. No entanto, as duas naturezas-mortas, que tenho dele, têm flores, fruta, pão e… água!
Manuel Giraldes
Mais uma bela crónica. Tal como seu pai, aprecio particularmente Cézanne. Já a lusa Josefa de Óbidos me parece um nadinha enjoativa. Talvez por ter enjoado os doces, de que os freiráticos são uma bombástica amostra. Cada vez gosto mais de pão/queijo, queijo/pão. Talvez por ser muito pão pão, queijo queijo. Sei que liga bem com vinho tinto, mas tenho uma estranha alergia ao dito, que até hoje ainda não compreendi. Causa-me mal estar, sonolência, dor de cabeça, especialmente os mais velhos. Estranho. Por isso lá me vou contentando com o branco. Porém o que mais me importa na gastronomia são os amigos à volta da mesa. Talvez fosse a opinião de uma senhora amiga de minha avó, que costumava convidar as pessoas para refeições onde se servia nada, na melhor baixela e com os melhores cristais e talheres de prata a condizer. Os cerimoniosos convivas, quando a empregada lhes enchia o prato de não-soupa, de não-peixe, de não-carne, de não-doce emitiam prazerosos murmúrios. Outro mistério, desta vez não do corpo mas da mente. Talvez fosse uma natureza morta. Quem sabe?