Texto João Barbosa
Há uns anos percebi, através dum artigo numa revista portuguesa vínica, que o Antigo Regime – sistema que vigorou na Europa desde finais do século XVI até à Revolução Francesa – afinal subsiste.
Se fosse um cronista político, essa Excelência seria arrasado da Esquerda até à Direita, incluindo monárquicos (julgo que defensores do Absolutismo devem ser três). Esse fidalgo da Casa Real do Vinho, espanhol de nascimento, defendeu que há uma nobreza entre os apreciadores.
Essa nobreza é formada por pessoas que, embora seduzidas pelo efeito do álcool, não se deixam embriagar; coisa de bárbaros, de ignorantes, selvagens… não estou a exagerar, os termos foram basicamente estes.
O arauto do Rei do Vinho é, para mim, o bobo da Corte. Porque não sabe História nem de Antropologia, nem pensa no que escreve. Além dos bárbaros, o escrevinhador ainda acrescentou um patamar de enófilos não conscientes. Há povo, burguesia e nobreza. O clero ficou de parte, ou então o bobo é também cardeal.
Não estou a defender que se beba desregradamente ou de forma que possa criar sarilhos. Durante séculos, aliás milénios, o álcool foi mais do que prazer. O vinho foi fonte de calorias, de bebida saudável (beber água, sobretudo nas cidades, era um risco para a saúde, devido à poluição de imundices de toda a espécie) e fonte de prazer.
Obviamente que o tempo mudou, felizmente. Num documentário, realizado pelo sociólogo António Barreto, mostra-se que em 1979 havia crianças, na Fonte da Telha – nos arredores de Almada e Sesimbra – cuja dieta incluía sopas-de-cavalo-cansado. Este facto gravíssimo revela o estado de miséria que se viveu até à instauração da Democracia, mas também o modo como era visto o vinho no dia-a-dia.
O alcoolismo, com base no vinho ou outro produto, não é desejável em qualquer aspecto. Porém, há uma diferença entre alcoolismo, intoxicação e bebedeira numa farra. Se o vinho – o álcool – chegou aos nossos dias é, em grande parte, devido ao seu uso «mágico», indutor dum estado alterado de consciência.
Depois, à parte do alcoolismo, da intoxicação ou do beber até cair (binge drinking), há o civismo, substantivo que tem tanto de ébrio quanto de sóbrio. Quem quer festejar sem limite tem todo o direito de o fazer, critico se for manobrar máquinas, pondo em risco a sua vida e a dos outros, criando momentos de perigo.
Aliás, os povos do álcool – os que o têm na cultura – sabem, mais ou menos, lidar com a situação, o que não significa ausência de problemas. O National Geographic Channel transmitiu uma série de documentários acerca dos vícios e dos locais onde os tóxicos criam calamidade de saúde pública. Entre, as situações (repetidas) de crack, heroína, cocaína, analgésicos para cavalo (!!!) também apareceu o álcool – numa única situação.
Nem todas as sociedades ameríndias (possivelmente a grande maioria) conheciam o álcool a quando da chegada dos europeus. As suas defesas são ainda hoje frágeis, em algumas regiões. Em algumas zonas remotas do Alasca, o consumo de álcool (destilado) equipara-se ao flagelo da heroína, como o verificado em Portugal na década de 90 do século XX. Uma garrafa de whisky em Anchorage vale mais de dez vezes nas zonas isoladas.
A moderação deve ser obrigatória. O civismo e a consciência no seu consumo deve inibir episódios de risco. Um grão-na-asa de vez em quando não é grave. Os «beatos» do vinho têm, certamente, as mesmas hipocrisias dos «beatos» doutras moralidades.
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