Texto João Barbosa
A região vitivinícola do Dão foi, durante muitos anos, um referencial de qualidade e onde nasceram marcas que garantiam qualidade, quando o país bebia sobretudo vinhos indiferenciados, a granel nas tabernas, do que vinha da aldeia quando o migrante interno lá ia matar saudades do berço.
O Dão não fugia à regra, mas puxando um bocadinho pela memória ocorrem-me alguns: Aliança, Caves Velhas, Constantino, Dão Pipas, Grão Vasco, Porta de Cavaleiros, São Domingos, Terras Altas, UDACA…
Em Nelas situa-se o Centro de Estudos Vitivinícolas do Dão, na Quinta da Cale. A designação, só por si pode parecer vazia de significado, mas é uma casa importante, instituída em 1946. Trata-se dum organismo dependente do Ministério da Agricultura, criado durante a ditadura do Estado Novo que muito promoveu o consumo de vinho. Ficou célebre a frase publicitária: Beber vinho é dar o pão a um milhão de portugueses.
O ditador António Oliveira Salazar, como homem de origens rurais, visitava a sua aldeia de Vimieiro, no Concelho de Santa Comba Dão. Gostava do vinho da sua terra e há imagens em que o serve a camponeses – apesar de tudo, penso que nisso era genuíno e não pose para as fotografias de propaganda.
O país era pobre – foi-o de facto até ao final da ditadura, em 1974 – e o vinho era uma fácil e acessível fonte de calorias. A agricultura tinha um peso enorme nas contas públicas e, dentro dela, o trigo e o vinho.
Quanto à pobreza, por vezes relativizada ou menorizada, cito que, em 1979, na Fonte da Telha – terra partilhada por Almada e Sesimbra, na Área Metropolitana de Lisboa – muitas crianças eram alimentadas a sopas-de-cavalo-cansado… vinho e pão. Não é mito, está documentado, incluindo em filme. Muito antes, possivelmente até talvez após o final da Segunda Guerra Mundial, era enorme o número de crianças descalças. E até adultos.
Assim se pode enquadrar a importância que o sector tinha no Dão neste departamento público. Quem teve oportunidade de provar e/ou beber vinho do Centro de Estudo de Nelas comprovou a excelência destes néctares, com uma notável capacidade de envelhecimento, tanto tintos como brancos.
Andando para a frente, a região do Dão decaiu muito nas preferências dos consumidores. O ressurgimento tem sido progressivo e, durante anos, motorizado pela Dão Sul (Global Wines). Hoje, ninguém nega a qualidade dos vinhos desta demarcação e têm surgido novos vitivinicultores.
A marca Grão Vasco é icónica e a Sogrape tem vindo a promove-la. Julgo que com bom resultado. Recentemente foi apresentado o Grão Vasco Prova Mestra 2013, um tinto feito com uvas da Quinta dos Carvalhais (mais de 50%), com 105 hectares, dos quais 50 são de vinha, sendo a parte restante comprada.
Grão Vasco Prova Mestra 2013 é um lote touriga nacional (36%), tinta roriz (31%) e alfrocheiro (33%). A fruta foi prensada em cubas de inox, onde ocorreu a fermentação alcoólica. Fez a fermentação maloláctica em barricas de carvalho francês, tendo estagiado durante 12 meses. Antes de sair para venda, estagiou três meses em garrafa. Foi aprovado como «Reserva», mas essa indicação não faz parte da marca, embora venha a indicação num selo à parte.
É um vinho fácil, onde as violetas – típicas da touriga nacional neste que é o seu berço – e as amoras e framboesas se «juntam». Menos óbvias, notas de mentol e de caruma de pinheiro. Na boca é suave, com taninos domesticados e com final não muito longo.
Já que escrevo acerca do Dão, não posso esquecer dois factos importantes. Um, mais conhecido do público, é o Queijo da Serra – o mais afamado cincho português. A outra referência é a obra do pintor Grão Vasco.
Portugal, pela sua situação periférica, as artes chegaram com atraso. Quando a Europa construía catedrais góticas, por cá ainda se erguiam igrejas em românico ou num género híbrido. Contudo, o caso de Vasco Fernandes, conhecido por Grão Vasco e que muitas vezes assinava como Velasco, é diferente.
Nasceu provavelmente em 1475, talvez em Viseu, e faleceu em 1542. Foi discípulo de Francisco Henriques, pintor flamengo, oriundo de Bruges. O facto de, à época, se traduzirem os nomes, ficou o registo dado nesse tempo.
A pintura de Vasco Fernandes pode ser considerada ainda como gótica, mas num período muito tardio, em que os avanços técnicos e «o gosto» do Renascentismo já se mostram.
Quem se passeie pelo Dão não perca uma visita ao Museu Nacional Grão Vasco, em Viseu, onde está um magnífico retábulo de São Pedro, originalmente colocado na Sé. Em Coimbra existe uma obra acerca do Pentecostes, no Mosteiro de Santa Cruz – onde está também o túmulo do primeiro Rei de Portugal, Dom Afonso Henriques. Em Lisboa, há que ver no Museu Nacional de Arte Antiga.
Quanto ao vinho, causa primária do texto, é uma aposta segura para quem aprecia o Dão. Não é estratosférico, mas também não é meramente mediano. A mediania cansa-me, mas este deu-me um prazer superior a esse patamar.
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