Texto Sarah Ahmed | Tradução Patrícia Leite
Eu adorei as minhas três curtas, mas doces, participações em vindimas, particularmente na Cullen Wines, em Margaret River, Austrália. Estive lá na altura certa: as uvas chegavam à adega inteiras e rapidamente.
A natureza ditava o que se fazia e quando se devia fazer, o que, apesar de ser fisicamente exigente, era mentalmente relaxante – não valia a pena programar as coisas! E como é delicioso provar os frutos do nosso trabalho! Ainda fico entusiasmada ao lembrar-me que fui eu que fiz a “batônnage” do Cullen 2007 Chardonnay, um vinho que recebeu o prémio de Melhor Chardonnay do Mundo nos Decanter World Wines Awards em 2010.
E confesso que, se o tempo voltasse atrás, eu ficaria extremamente tentada a voltar a fazer vinho, em vez de apenas escrever sobre ele. Talvez devesse seguir as intrépidas pisadas de três produtores de vinho Portugueses que estão a fazer isso mesmo. As suas estórias são inspiradoras. Aqui fica a primeira. As de Richard Mayson e Tiago Teles virão a seguir.
João Afonso nasceu em Coimbra em Fevereiro de 1957. Estudou Educação Física na Universidade de Lisboa e apaixonou-se pela sua primeira carreira, o ballet, quando uma bailarina apresentou a dança ao estudante de desporto. Dois anos depois, dançava pelo mundo fora com o célebre Ballet Gulbenkian, onde passou 15 anos.
Afonso diz que se apaixonou pelo vinho mais lentamente já que “os bailarinos falam sempre e (quase) exclusivamente sobre port de bras, cou-de-pie, pirouettes, grand jete… e performances de dança. Comem e bebem pouco, porque têm que estar em boa forma física todas as manhãs”.
No entanto, a semente da ideia de fazer vinhos foi plantada quando em 1983, a mulher de Afonso lhe deu uma cópia do livro “Conhecer e Trabalhar o Vinho” do aclamado professor de Enologia da Universidade de Bordéus, Émile Peynaud. Acrescenta ele “a minha avó era uma pequena produtora de vinho na Beira Alta e, de certa forma, eu estava com saudades dos velhos tempos quando tudo o que comíamos e bebíamos era feito em casa e as coisas tinham outro sabor e outro gosto (nem sempre o melhor, mas mais genuíno, sem sabores sintéticos e fáceis …)”.
Embora tenha frequentado um curso intensivo de uma semana sobre fazer vinho na Escola da Anadia, Bairrada, em 1987 (Afonso tinha desde há muito, uma paixão pelos vinhos maduros da Bairrada), a sua carreira itinerante e de grande notoriedade como o bailarino principal da companhia, impediu-o de perseguir seriamente o seu interesse pelos vinhos. Foi apenas quando a sua carreira na dança terminou em 1993 que, tanto o conhecimento como o interesse floresceram, especialmente depois de ter conhecido o Professor Virgílio Loureiro do Instituto Superior de Agronomia de Lisboa (na altura, enólogo na Quinta dos Roques e Quinta das Maias no Dão) e João Paulo Martins (o jornalista de vinhos).
Em 1994, Afonso tinha começado a fazer vinho, a partir dos dois hectares da vinha envelhecida Ribeiro na Beira Alta. Foi plantada no início do século XX quando a sua avó era ainda uma criança. Primeiro, surgiu um tinto, no ano seguinte, um vinho branco, usando barricas antigas fornecidas por Dirk Niepoort da Niepoort.
Apesar de Afonso estar muito contente com os vinhos, que ele descreve como “extraordinários (na minha modesta opinião)”, o princípio do fim da sua primeira aventura na produção de vinhos, veio quando o seu irmão mais velho arrancou a vinha envelhecida.
Por sorte, Niepoort e Loureiro já tinham apresentado Afonso a Luís Lopes, o director da, na altura, recentemente lançada, “Revista de Vinhos” e, segundo as suas palavras, “como a produção de vinho era um assunto familiar melindroso (eu tenho mais quatro irmãos), comecei com o fantástico e mais fácil assunto da escrita de vinhos, em Maio de 1994”. Ele ainda escreve para a Revista de Vinhos e, entre 2000 e 2008, escreveu o seu próprio guia para vinhos no mercado português. Também escreveu dois livros sobre vinhos “Entender de Vinho” e “Curso de Vinho”. No entanto, ele admite, “escrever não é de todo o que prefiro fazer. Também é uma forma de arte, mas às vezes (muitas vezes) não tem nada a ver com “o lado bom da vida”. Para Afonso, o lado bom da vida é “ver e sentir a beleza e a felicidade”. Uma sensação que ele experimentou vividamente em 2009, quando descobriu uma velha e pequena vinha (3.9 hectares) em Reguengo, Portalegre, à venda e decidiu que a sua missão era protegê-la e recuperá-la.
Porquê Portalegre? Afonso responde: “Eu escolho o Norte do Alentejo por três razões: a paisagem é semelhante à da Beira Alta (mais bonita e eu sinto-me em casa); é mais perto (de Lisboa) que a Beira Alta; e, acima de tudo, tem vinhas antigas com materiais envelhecidos (sem selecções de cultivadores de viveiros): castas envelhecidas, todas misturadas no mesmo enredo de vinho. Se podemos falar de “terroir” em Portugal, a Quinta das Cabeças, ou seja, o Reguengo pode ser um”. De facto, e como um bom presságio, depois de ter comprado a quinta, ele soube que o altamente respeitado enólogo alentejano Colaço do Rosário (criador do Pêra-Manca) identificou a encosta da Quinta das Cabeças como o melhor sítio para criação de uvas em todo o Alentejo.
Oito meses depois, Afonso tinha feito os seus primeiros vinhos: Equinócio (branco) e Solstício (tinto), parcialmente fermentado em ânfora de barro, como tinha sido a tradição regional durante séculos). No entanto, ele afirma nunca ter tido uma visão para o vinho: “Eu não sou um enólogo” diz, “Eu só tento proteger a minha vinha e colher as uvas para deixá-las tornar-se vinho”. A confiança de Afonso em deixar que as vinhas falem, advém da sua crença na vinha: “Eu gosto de a ver. Gosto de me sentir dentro dela. Eu não faço vinho, a vinha é que o faz. Eu deixo que os meus olhos escolham por mim”.
A abordagem não intervencionista começa com a vinha, que é organicamente certificada e cultivada de forma biodinâmica. Para Afonso “perceber a nossa propriedade, seguir o calendário lunar de Maria Thun e aplicar as preparações biodinâmicas em doses homeopáticas, resulta em vinhas ainda mais genuínas e intensas”. Para além disso, ele jurou nunca voltar a usar químicos, depois de ter pulverizado os seus olivais em 1999 contra as traças: “o cheiro era tão terrível que achei que, se as oliveiras tivessem pernas, teriam fugido rapidamente!”.
Então, o idílio rural corresponde às expectativas? “Sim. Completamente” é a resposta de Afonso. Uma vez que ele é pouco inspirado pelos “vinhos globalizados ou em voga” (vinhos com Syrah, Merlot, Cabernet Sauvignon, Petit Verdot, Viognier, Sauvignon Blanc, Touriga Nacional…) que ele acredita terem resultado numa perda enorme da tradição vitivinícola, ele orgulha-se intensamente do facto de Cabeças ter “dado provas que é possível fazer bom vinho com uvas que toda a gente despreza”.
Para além disso, a experiência de Afonso implica que ele nunca tenha tido ilusões sobre os desafios inerentes à venda do seu próprio vinho. Ele explica “escrever sobre vinhos ensinou-me a dificuldade de vender vinhos, mesmo vinho muito bom, e eu já tinha tido essa experiência na Beira Alta”. Escrever implicou que Afonso compreendesse bem a importância de ter uma história diferente e genuína e não fazer apenas algo semelhante a outros vinhos: “Teria morrido à partida”, diz.
Afirma ainda “A única hipótese é fazer algo completamente diferente, algo bom e algo difícil de encontrar”. Entrando neste tema e olhando para o quadro geral, ele observa “Portugal é diferente. Não existe isso [as castas e os terroir] em mais nenhum lado senão aqui. E nós fazemos mesmo vinhos muito bons… Eles são puros, bons e falam uma língua simples, sumarenta e fantástica com aqueles que os sabem perceber”. Então por que motivo devemos escolher o seu vinho, pergunto? Porque, responde ele, “é o sabor de uma vinha alentejana de 1920, através dos olhos e das mãos de um crítico de vinhos – um ex-bailarino”. Esta é uma proposta verdadeiramente única. E para reforçar, posso acrescentar que Equinócio e Solstício são também excelentes propostas para amantes de vinhos excitantemente autênticos com uma sensação palpável de lugar.
Leave a Reply