Posts By : João Barbosa

Piparote na adega

Texto João Barbosa

Podem o Governo e organizações económicas fazer campanhas de promoção e defesa das produções portuguesas que o indígena vai sempre olhar para si e para a algibeira. Somos um povo individualista, muitas vezes invejoso e com grande pontaria para acertar com as balas nos pés.Há dias provei um vinho da Adega Cooperativa de Vila Real que bom prazer daria num dia quente. Um rosado guloso para ser bebido à conversa, demasiado doce para acompanhar o que quer que seja.

Não havia nada de errado com o vinho. A crítica vai para o vedante. É certo que vinhos para serem bebidos jovens se compreende a utilização de carica ou tampa de rosca. Percebe-se, mas fica mal aos portugueses. Pelo menos no que vendem dentro de portas. Há mercados que preferem objectos sintéticos… e aí é negócio, compreendo se enquadrem nessa prateleira de vinhos fáceis e breves.

Uma empresa que escolher, para fechar o seu vinho, um cilindro sintético, escorregadio para saca-rolhas razoáveis, de cor a imitar a da cortiça, devia pagar 85% de IRC. No mínimo! Não só é uma «fraude» imitar cortiça, como é um atentado à economia.

Fake

Rolha sintética

O turismo é responsável por 5,8% da riqueza nacional. Em Maio, talvez Abril, chegam escandinavos da cor de leite, pouco resistentes à força do Sol da Europa meridional. De Junho a Setembro, chegam aos milhares, em voos regulares, em companhias low-cost, em charters, de comboio… todo o ano chegam cruzeiros. Lisboa, Algarve, Porto, Madeira ou Fátima oferecem variedade: praia, negócio, cultura, espiritualidade, etc.

O turista senta-se numa esplanada da Rua Augusta e pede um vinho. O empregado, de humor variável, apresenta-lhe uma garrafa com vedante artificial. Que imagem leva para a sua terra? Que os portugueses desprezam a sua economia.

A Adega Cooperativa de Vila Real não é, infelizmente, caso único. O que torna mais grave é ser uma empresa que lida com muitos agricultores, que lhes paga as uvas e sustenta emprego directo e indirecto. Devia ter mais respeito pelos silvicultores e industriais nacionais.

Ao escolher uma rolha falsa, a Adega Cooperativa de Vila Real deita por terra o incentivo ao consumo do que é nosso. Por que raio hei-de beber vinhos portugueses? O que me levará a oferecer Douro, Alentejo, Bairrada… a um amigo doutro país?

Os cilindros com cor de cortiça – além de parecerem o que não são – são feitos com materiais sintéticos, com impacto negativo no ambiente. Pode argumentar-se que pode ser reciclado. Pois, mas até aí chega a cortiça: além de reciclável é facilmente reutilizável. Acresce, que os montados, para lá do rendimento e do emprego que geram – directa e indirectamente – são positivos para o meio ambiente, fixando carbono e sustentando ecossistemas.

Irá longe o tempo em que beber vinho era dar de comer a um milhão de portugueses. Vai longe, mas a fileira dá emprego a muitos portugueses. Em 2012, o vinho foi responsável por 11% das exportações de bens alimentares. No conjunto das vendas ao exterior, o vinho pesou 1,6% – correspondendo a 725 milhões de euros.

Cork

Rolha cortiça

E o que dizer da cortiça? Pela casca do sobreiro nascem 2% das exportações nacionais – 845,7 milhões de euros, por 189,3 mil toneladas. A fileira da cortiça dá trabalho a mais de 8.700 pessoas.

Não seria melhor que os portugueses se apoiassem mutuamente? Os silvicultores, muitos deles também vitivinicultores ou viticultores, merecem reconhecimento. Não é caso único, repito… mas a uma casa com tantos agricultores fica muito mal trocar a rolha de cortiça por um bocado de «palavrão».

Pão com Presunto

Texto João Barbosa

Menino Carlitos, quanto são dois mais dois?

– São quatro, senhora professora.

O menino Carlitos cresceu, passaram a chamar-lhe Senhor Carlos (e apelido), e percebeu, num momento de proveitoso ócio, que dois mais dois podem não ser quatro. Chegou lá enquanto se deliciava com uma sandes de bom pão e excelente presunto.

Em gastronomia é frequente a matemática, no ramo da aritmética, não ser uma ciência exacta. A soma do pão, com o seu adocicado e um pouco acre, e do presunto, com o seu sal – simplificando: valem mais do que em separado.

A união faz a força… se não for desastrada. Entre o acerto e o desastre, as harmonizações do vinho (ou doutra bebida) com a comida são um jogo de prazer, de adivinhação e de conversa. Uns tenderão a juntar por afinidades e outros por disparidades. É como as relações amorosas:

– Que lindo casal, vivem juntos há 50 anos. Têm tanto em comum, que só poderia dar certo.

– Que lindo casal, vivem juntos há 50 anos. Se não fossem tão diferentes um do outro e certamente estariam divorciados no final do primeiro ano.

À vontade do freguês! Este desafio gastronómico enriquece culturalmente. Só por si, a comida pode ser apenas alimento. Vejo uma grande diferença entre comer e alimentar. Alimento-me para viver, já que não sou planta e, por isso, não realizo a fotossíntese. Como por prazer, tal como gosto de cinema, artes plásticas ou poesia. Vinho será apenas álcool se dele não tirarmos prazer da cor, aroma e paladar.

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Wine & Food in idealmagazine.co.uk

 

Confesso-me muito insensível à cor. Serve-me para perceber defeitos ou evolução, é instrumento de análise, é função e não forma. Não me embebedo com o rubi ou o âmbar. O mesmo não acontece com o aroma e o comportamento na boca.

Ainda assim, vinho não pode ser apenas vinho, ainda que gostando muito… um copo ao almoço, outro no final do dia de trabalho e um para o jantar… mais uns tantos numa festa – se conduzir, não beba.

O vinho tem de ser compreendido como um polígono. Se for visto apenas como vinho, para que interessam as condicionantes, naturais e humanas, que constituem o terroir? Dentro dum copo há, ou pode haver, história, literatura, música, memórias dum livro, lembranças de afectos.

Não gosto muito de me citar ou de palrar egocentricamente, mas aqui prefiro. Não sou dono de experiências alheias. E se quem divergir quiser tirar pagode, que o faça à minha custa – pois sou o dono da prosa – e não de alheios.

Um dia causei risota porque descrevi publicamente um vinho com uma identificação de lugar. Talvez pudesse enumerar um ramalhete diversificado, com algumas flores verdadeiras, outras induzidas, sugeridas, inventadas e de plástico. Era um vinho fantástico, de enorme complexidade. Aquele Vinho do Porto ficava em Óbidos, numa floreira enorme como uma floresta, pendendo na parede branca duma casa de regalo.

Outra vez defini um vinho com a palavra «Natal». Podia ter cantado uma ladainha: massa de bolo, frutos secos, fruta cristalizada, especiarias, blá, blá, blá… – oh tédio enfadonho! Sim, é um pleonasmo.

Quanto mais somarmos, maior será o resultado – exceptuando se escolhermos desgostos. Cada acrescento de história, antropologia e arte é mais do que a sua unidade. O resultado pode ser uma simples e sintética palavra… garanto, e bem que sou falador e vasto escrevinhador.

Até da amizade se faz vinho

Texto João Barbosa

Os portugueses têm uma enorme capacidade de inventar anedotas. Ou britânicos são subtis, algo frios e certeiramente inteligentes. Os alemães parecem não ter sentido de humor, mas têm… quem não tem são os suíços, ou não fosse a Confederação Helvética um ninho de banqueiros. Os alemães têm humor sem graça, mas fazem chalaças.

Disse-me uma amiga – alemã, por sinal – que o humor português é sádico. É verdade! Rimo-nos da desgraça alheia, ainda que duma personagem inexistente. Rimo-nos de nós mesmos, o que valorizo – traduz inteligência pelo auto-conhecimento, sentido crítico e relativização.

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Vinho & Amigos in wallpaperscraft.com

Acontece um fenómeno qualquer, em qualquer lugar do mundo, e o português fez dez anedotas na primeira meia hora após o incidente. Somos muitas vezes cruéis e injustos. Não deve haver português que não tenha ouvido a anedota do senhor Fonseca. No seu leito de morte chamou os filhos e ensinou-lhes uma esperteza:

– Nunca se esqueçam, que até das uvas se faz vinho.

Este senhor Fonseca nunca terá existido – deverá ser fruto de galhofa de mau gosto, ao citar-se uma pessoa real, e está datada. Reflecte uma época em que se valorizava produzir muito, interessando pouco o fazer bem.

Chamamos amigo a alguém que conhecemos há um mês e ignoramos a generalidade dos seus defeitos e virtudes. Porém, como tudo tem um começo, gosto dizemos que estamos a fazer amizade com alguém que acabámos de conhecer. Travar conhecimento parece suíço.

Gambrinus in gambrinuslisboa.com

Há uns dias fui ao Gambrinus – restaurante histórico da Baixa de Lisboa – beber umas imperiais com dois amigos. Um fugiu cedo e fiquei com o outro camarada à conversa, entre cervejas e croquetes… não hei-de estar gordo: um croquete tem praticamente as mesmas calorias diárias necessárias para um homem adulto.

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Imperial

A dada altura olhámos para o lado e estava um cavalheiro com um prato de ostras. Pediu para beber Moët & Chandon, o que nos deu oportunidade para encetar conversa. O meu amigo, ainda mais sociável do que eu, questionou-o por que escolhera aquele vinho.

Porque gostava, ora pois! Ah, sabe… temos belos espumantes… e coisital… que tal está? Palavra puxa conversa e ali ficámos, muito depois da hora prevista, conversando com o cavalheiro.

Um senhor simpático, de fácil conversa, educado… já disse cavalheiro?… Bem, o nosso interlocutor produz vinho na quentíssima região da Granja-Amareleja. A climatologia foi chamada para o debate, o amanho da terra naquelas paragens, história, a alimentação…

Sinceramente, não sei quantos quartos de hora durou a conversação. Sei que foram vários e tão agradáveis que foram escassos, travados pelos compromissos familiares. Ora o fazer amizade dos portugueses e a franqueza que o vinho merece proporcionaram um belíssimo momento.

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Guadelim Reserva 2009

À saída, o nosso bom conversador ofereceu-nos uma garrafa do seu vinho. Não conhecia. Guadelim Reserva 2009, com denominação de origem controlada de Granja-Amareleja. Potente e envolvente, com o calor daquelas paragens e muito longe de ser uma sopa ou uma compota. Nele mora ainda a madeira de azinho – obviamente inexistente – traduzindo uma boa integração e identificação.

O que ficou dessa conversa? Uma vontade de conhecer o território das vinhas donde saíram as uvas que fizeram o Guadelim e… uma noite cálida, neste Inverno bem frio, a jantar com amigos.

A propósito, Guadelim é nome duma ribeira. Pode ser Godelim, vem do árabe, quer dizer «rio da fonte», e mistura-se com língua germânica. Pois, até com dicionários se faz… água.

Quinta do Pôpa Homenagem 2009 para beber e quadrar

Texto João Barbosa

Quando se olha para trás, aí uns 20 anos, para situar um momento após a entrada na então Comunidade Económica Europeia (1986), que muito alterou Portugal, o país não é o mesmo. Em tantas coisas, são dois países.

Há 25 anos não havia canais de televisão privada e nem «restaurantes» MacDonalds – lembro-me de, em 1991, mocinhas adolescentes se concentrarem, junto ao primeiro «Mac», entusiasmadíssimas com a colecção de objectos que de lá traziam, como palhinhas, copos, etc. As marcas de roupa, normais na Europa, davam algum status – hoje parece ridículo.

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Festival da Canção in aluzdomeucaminho.blogs.sapo.pt

O Festival da Canção, o Eurofestival da Canção e o Natal dos hospitais eram um acontecimento. Os dois primeiros, por serem emitidos à noite, reuniam «todo» o país e eram assunto de conversa nos dias seguintes. Já o outro programa, que durava horas infinitas, tinha como espectadores reformados e pacientes hospitalares.

O país era, talvez, ingénuo, com tanta modernidade para aprender. Ter-se-ão perdido coisas boas, mas também infelizes. Como tudo. Para mim, há 25 anos foi o começo do meu ofício, no Diário Económico, órgão onde talvez tenha sido o mais jovem redactor.

Bebia-se mais vinho e os «mais velhos» bebiam o «da casa». Havia pipos e tabernas. Nesse começo dos anos 90 um vinho duriense ganhou uma projecção enorme – julgo por causa dum prémio – e tornou-se apetecido, mais caro. Pelo pioneirismo ainda muitos o têm a marca como referência nos píncaros: o Cabeça de Burro, das Caves de Vale do Rodo. Não é o que foi, como se comprova pelos cerca de 7,5 euros com que é vendido ao público.

Passou-se do oito ao 8000. O número de agricultores diminuiu, mas aumentou o de produtores engarrafadores. Fixe! Mas são tantos, tantos, tantos, que é impossível conhecê-los todos e, mais ainda, provar todos os seus néctares. E continuam a brotar, a fonte parece inesgotável.

Por diversas razões, alguns produtores recentes ganham projecção. Uma das razões – a principal ou que deveria ser a mais importante – é a qualidade do produto que põem no mercado. Não basta. Há que ter cuidado com a designação da marca, com o aspecto do rótulo e perceber que se navega numa multidão. São cada vez mais os vitivinicultores que recorrem a profissionais de comunicação e, por isso, agências especializadas iluminam os seus clientes.

Todavia, tudo vai bater ao ponto inicial: a qualidade. Ainda jovem, a Quinta do Pôpa é uma mais-valia para os enófilos. Gente jovem e dinâmica está merecidamente a ganhar lugar nas notícias e artigos – e cá estou eu a juntar-me à festa. Todo o profissionalismo concentra-se no fundamental: qualidade e «honestidade».

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@ Quinta do Pôpa – Foto Cedida por Quinta do Pôpa | Todos os Direitos Reservados

Esta honestidade que refiro é a de transmitir a natureza ao produto final. Vinho verdadeiro, sem máscaras ou artifícios. A Quinta do Pôpa faz vinho Quinta do Pôpa. O cuidado e o rigor têm uma origem acrescida: o saber e arte de Luís Pato, um dos homens que ousam afirmar e fazer excelentes vinhos com a complicada casta baga, da Bairrada.

Francisco Ferreira, conhecido pela alcunha do «Zeca do Pôpa, fez pela vida e conseguiu amealhar para comprar uma quinta no Douro, em 2003. Situada em Adorigo, no Concelho de Tabuaço, a Quinta do Vidiedo, com 14 hectares, foi rebaptizada, em 2008, para Quinta do Pôpa. Os netos quiseram homenagear o avô e concretizar o seu sonho de fazer vinho.

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Vanessa Ferreira e Stéphane Ferreira – Foto Cedida por Quinta do Pôpa | Todos os Direitos Reservados

A primeira colheita foi em 2007. Este ano, Vanessa Ferreira e Stéphane Ferreira, netos do «Pôpa» lançaram o Quinta do Pôpa Homenagem 2009.

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Quinta do Pôpa Homenagem 2009 – Foto Cedida por Quinta do Pôpa | Todos os Direitos Reservados

As uvas vieram de vinhas velhas (40%) e de talhões individuais de tinta roriz (35%) e touriga nacional (25%). Fermentações separadas em pequenos lagares de inox, macerações prolongadas, onde foram pisadas a pé. O vinho foi directamente para barricas de carvalho francês – 40% novas e 60% de segundo e terceiro anos.

Escrever acerca de evocações é-me doloroso, pelo receio de se ser deselegante ou desagradável. Remato com a sentença de que a homenagem calhou muito bem. Honra pela qualidade e respeito pela terra e suas uvas.

Contactos
Quinta do Pôpa, Lda.
E.N. 222 – Adorigo
5120-011 Tabuaço
Portugal
Email: geral@quintadopopa.com
Telemóvel: (+351) 915 678 498
Site: www.quintadopopa.com

O melhor vinho

Texto João Barbosa

O melhor vinho do mundo é português, da minha região, do meu concelho, da minha freguesia, da minha aldeia e, por acaso, é o meu. Este raciocínio é partilhado, no todo ou na parte, por muitos portugueses.

Obviamente que não há «o melhor vinho do mundo». O bairrismo é muito português e dá-me gozo, se não for alarve, pois gera conversa, troca informações entre divergentes. Gosto do espírito (saudável) de família, clã e de tribo.

Penso que é unânime que nunca houve tão bom vinho em Portugal como hoje. Porém, sempre se fizeram vinhos de excelência. Antes de existirem enólogos já se fabricavam néctares divinos. Mérito da natureza, certamente, mas sobretudo do produtor.

Os antigos não eram burros. Sabiam o que faziam e, certamente, conheciam coisas que hoje são desconhecidas de muitos profissionais experimentados e cultos.

Dou um exemplo que não diz respeito ao vinho. Um amigo teve, a dada altura, uma oficina de prataria, destinada a restauros de antiguidades e reproduções de qualidade. Contratou um grupo de ourives de reconhecida qualidade e tarimba. Porém, quando a peça tinha origem mais remota do que o século XVIII (inclusive) nem sempre se sabia o que fazer.

Alguns males deste país são a falta de arquivos, por desleixo, terramotos, maremotos, incêndios e pilhagens de guerra. Perante o desespero e vontade de desistência dos artífices, o meu amigo reuniu a equipa e sentenciou:

– Caros amigos, os antigos não eram estúpidos, como hoje não somos mais estúpidos do que eles. Se faziam «estas» coisas é porque era possível fazer. Se é possível fazer, vamos fazê-las. Não há outra hipótese.

Procurou e encontrou bibliografia e fontes de informação, estudou as peças. Os oficiais e mestres leram, digeriram e, passado um tempo, estavam a trabalhar reproduções ou reparações de artefactos cujo conhecimento técnico se perdera.

As romãs enxertam nas laranjeiras, com vantagens, embora o oposto não seja possível – nem dá hipótese. É estranho, porque não fazem parte da mesma família. Não conheço agrónomo que explique.

Os antigos sabiam, empiricamente, que o cultivo de leguminosas junto às vinhas era benéfico, além de fornecer alimento. Que (caso de Colares) as macieiras contrabalançam o desgaste causado pelas videiras, fazendo fé no que me disse um homem da região.

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Vinho in wikipédida.org

 

Espero nunca perder o deslumbre continuado pelas coisas do vinho e da lavoura – da natureza e do homem. O Vinho da Madeira é maravilha (sem o artigo, como diziam os medievais) de se ver, sabendo dos seus padecimentos.

Os meus 45 anos permitiram-me «ver» uma multidão vinhos novos e velhos imbebíveis, mas também de pérolas. Hoje, com todo o conhecimento e mão-de-obra qualificada, é fácil encontrar um bom vinho. O que não era verdade, por isso encanto-me com peças de arqueologia e/ou museologia enológica.

Sei que serei fustigado por só escrever alguns e dos mais recentemente revelados, mas vai: o Taylor’s Scion, o Taylor’s Single Harvest 1863 ou o Moscatel de Setúbal Superior 1911 são colossos. A Sogrape prepara-se para celebrar os 225 anos da Sandeman e é de esperar outro grande vinho, tal como foi Kopke 375, que marcou o aniversário da casa.

A vida destes vinhos, todos aguardentados, é naturalmente mais longa. Todavia, nos «normais» há, por exemplo, excelentes Bairrada, Dão e até Alentejo…

Voltando ao princípio, ao amor ao terrunho, que tolda a lógica e o bom-senso; um produtor alentejano lançou, há um ano (dois ou três) um licoroso com oito anos de estágio em barrica. O preço de saída ombreava com o de prateleira de Vinho do Porto 20 anos.

O Alentejo é o Douro – nas condições de excelência para este género como na qualidade consistente percepcionada. O preço do abafado alentejano era estapafúrdio. Que saiba, vendeu-se todo. A quem? A quem acredita que o vinho da sua região é o melhor de Portugal, quiçá do mundo.

Poucas certezas e muitas mais dúvidas

Texto João Barbosa

Diz um amigo que as tradições são para se quebrarem. Nesta provocação cabem verdades boas e lamentos. Já não se queimam «ímpios», como já ninguém sabe fabricar as talhas de barro, para a feitura de vinho no Alentejo – perda de conhecimento histórico e antropológico.

Esta coisa das tradições é como a do gosto. O gosto discute-se e deve ser discutido; o que não se discute é o direito à oposição e o respeito que exige. No caso do vinho, e outros alimentos, uma denominação de origem deve ser mais do que uma delimitação geográfica. De todos os factores, debruço-me no primordial: casta.

A casta e a sua ligação à terra são a herança, património transmitido aos futuros. Contudo, devem ser um travão à imaginação, gosto, etc. Se um vitivinicultor quiser fazer azul, quando a tradição é verde, deve ser livre de o fazer. O que não é correcto é chamar verde ao que é azul.

A questão está no rótulo, na palavra referente ao território e à uva que é seu emblema. Um vinho com denominação de origem controlada não é melhor nem pior do que um regional; são coisas diferentes e separadas se devem manter.

Discutir as castas da Bairrada é uma tradição. Quanto a mim, no topónimo não cabem as cabernet sauvignon, merlot, chardonnay, etc. Como não cabem apenas a baga e a maria gomes.

É verdade que, nessa região, a presença de variedades estrangeiras não é propriamente recente. A partir de que tempo se pode considerar como «autêntica»: dez anos, 20, 30, 100?

Reconheço alguma xenofobia. Tanto mais que há castas estrangeiras em Portugal há séculos, como a malvasia ou a moscatel de alexandria. Essas são portuguesas, e o que dizer da alicante bouschet que encontrou o seu habitat no Alentejo?

Há outra questão, a da transumância interna. A touriga nacional tem tanto de alentejana quanto a syrah. Aqui sublinho a alvarinho; partilhada por minhotos e galegos. Descoberta como grande casta, tornou-se apetecível noutras paragens.

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Casta alvarinho in wikipédia.org

Num primeiro momento reinou algum provincianismo quanto à permissão do uso rótulos da região dos Vinhos Verdes, que não da sub-região de Monção e Melgaço. Podia haver alvarinho num rótulo alentejano, mas não num de Ponte de Lima. Chegou-se a um acordo, a 13 de Janeiro, muito feliz. Todos podem usar o nome da casta, mas a sub-região de Monção e Melgaço vê reconhecida a sua especialidade através de selo de garantia exclusivo.

Ao problema da autenticidade acrescento os factores enológicos … com a padronização dos processos, será que Regional Alentejano, Regional Tejo, Dão ou Douro não ficarão parecidos? A tecnologia não esbate o território e casta?

No afã de diferenciar acontecem coisas como as verificadas na Beira. Não entendo o mapa. O problema não é haver muitas denominações de origem, mas sítios sem valor-acrescentado ou especialização, «lugares inexistentes».

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Folha de alvarinho in wikipédia.org

Isso, o consumidor não percebe, mas entende escalas. Devia existir uma tabela de classificação: Primeira Classe, Segunda Classe, etc. Lá estou eu a complicar e já basta o que é – dirão muitos. Complicado é andar sempre a mexer na toponímia e tratar por igual o que é diferente.

O que pensa um consumidor estrangeiro ao ver um Douro a três euros e outro a 80 euros? Mais caro não é melhor, é sabido. Não é mais claro assumir diferença e/ou especificação de terroir?

Explicar a um estrangeiro que Portugal existe e faz vinho há milénios é tarefa vivida por muitos. Colocar a diferenciação numa casta – que se pode cultivar até em Marte – é preferível a dizer a verdade?! Que fazemos lotes? O trabalho de explicar touriga nacional e blend não é o mesmo? Antes mais cedo do que depois ter de dizer que o Pai Natal não existe.

Não me considero analfabeto, pelo que opto pelo princípio da incerteza. Tenho preferência, não sou peremptório. Daqui por uns 300 anos a merlot não será – pelos meus argumentos – tão bairradina quanto a baga? Vencido, mas não convencido! Por paixão e pouca lógica.

O terroir e o ambiente

Texto João Barbosa

A palavra terroir é uma coisa esquisita que, provavelmente, apenas conhecida pelo povo do vinho. Tenho ouvido acrescentos e tesouradas quanto ao significado desta palavra francesa sem tradução para outra língua – afirmação carente de estudo exaustivo da minha parte.

Terroir tem uma dimensão quase mágica, antropológica e amorosa. Quanto a mim, é solo, subsolo (ou até onde chegam as raízes), ecossistema de proximidade, envolvente natural (vida e não vida) transportada pelo vento, factores climatológicos, casta adequada, conhecimento agrícola e intervenção humana no campo. Tudo bonito e que se pode estragar por trabalhos «violentos» na adega.

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Região Vitivinícola da Borgonha in en.wikipedia.org

Nenhum vitivinicultor diz mal do seu vinho e há «milhares» que dizem que a sua quinta tem um terroir próprio. Mudar «uma vírgula» não muda propriamente um texto. A minudência do terroir vem por empréstimo da Borgonha, onde existem micro regiões. La Tâche tem pouco mais de seis hectares, um exemplo. Dos seis aos 540 hectares, há terroirs para todos os conceitos. Até aqui está quase tudo bem. A complicação surge quanto ao modo de amanhar a terra.

La Tâche

La Tâche in en.wikipedia.org

Primeiro ponto: um território onde a vinha é regada é parte do terroir? Quem molha as videiras diz que sim, quem não lhes dá água afirma que não, porque prova que a trepadeira não está instalada num local confortável – não é dali.

Segundo ponto: vinhas tratadas com herbicidas, fungicidas e pesticidas de síntese têm o direito de serem parte dum terroir? Porém a adição de calda bordalesa, por mais natural que seja, também não passeia naturalmente na terra e o cobre é tóxico.

sulfato de cobre

Sulfato de Cobre in www.ebah.com.br

Terceiro ponto: aparar as ervas é consentâneo com a natureza? O plantio – ancestral e hoje reconhecido –, nas entrelinhas, de plantas que fixam azoto é consentâneo?

Aparador

Aparador de ervas

Quarto ponto: se o vinho é um produto de «agricultura inteligente» negar ou reduzir ao mínimo a intervenção humana não contraria a essência da lavoura?

O Domaine de La Romanné-Conti, na Borgonha, adoptou há anos a prática de agricultura biológica, depois de biodinâmica e hoje o amanho é feito com tracção animal. Exagero ou marketing?

A biodinâmica é um modelo radical de agricultura biológica – assumo o adjectivo como substantivo – que defende uma intervenção mínima, certificada por um organismo privado e pouco flexível: a Demeter. O movimento foi criado, na Alemanha, por Rudolf Steiner, que a apresentou em 1924. Não sei por que carga de água os nazis foram implicar com a filosofia.

Rudolf Steiner - em 1905

Rudolf Steiner in en.wikipedia.org

A biodinâmica recolhe contributos ancestrais, como os ciclos lunares ou a astrologia zodiacal, de 12 signos. Para mim, é misticismo, porque na realidade são 13. Porém, 12 é um número mágico, formado por outros algarismos transcendentes, como o três e o quatro.

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Zodiaco e ciclos lunares in commons.wikimedia.org

Para se ter uma noção do radicalismo: uma herdade com cerca de 500 hectares ia sendo chumbada, porque um buraco no caminho fora tapado com bocados de tijolo. Foi complicado fazer crer que o tijolo é feito de barro. Só cultiva biodinâmico quem quer, e mal não faz.

Para remate conto o que ouvi acerca dum produtor da Borgonha. Diz que a casta só se manifesta nos primeiros anos. Depois da maturidade, a planta expressa o terroir.

Rega, não rega? Casta específica, ou não? Cultivo nas entrelinhas, ou não? Aparar as ervas bravias, ou não? Usar tracção animal, ou não? Usar produtos de síntese, ou não? Cada um tem o seu conceito de terroir e de boa prática de lavoura.

Céptico ou discordante de alguns factores enunciados, o que sei é que há vinhos fantásticos onde não se pratica agricultura biológica nem biodinâmica e onde a rega é praticada.

Bárbaro é o Rei dos Ostrogodos

Texto João Barbosa

Há uns anos percebi, através dum artigo numa revista portuguesa vínica, que o Antigo Regime – sistema que vigorou na Europa desde finais do século XVI até à Revolução Francesa – afinal subsiste.

Se fosse um cronista político, essa Excelência seria arrasado da Esquerda até à Direita, incluindo monárquicos (julgo que defensores do Absolutismo devem ser três). Esse fidalgo da Casa Real do Vinho, espanhol de nascimento, defendeu que há uma nobreza entre os apreciadores.

Essa nobreza é formada por pessoas que, embora seduzidas pelo efeito do álcool, não se deixam embriagar; coisa de bárbaros, de ignorantes, selvagens… não estou a exagerar, os termos foram basicamente estes.

O arauto do Rei do Vinho é, para mim, o bobo da Corte. Porque não sabe História nem de Antropologia, nem pensa no que escreve. Além dos bárbaros, o escrevinhador ainda acrescentou um patamar de enófilos não conscientes. Há povo, burguesia e nobreza. O clero ficou de parte, ou então o bobo é também cardeal.

Totila rei dos Ostrogosdos

Totila, Rei dos Ostrogodos, reinou de 541 a 552. Pintura do século XVI, de Francesco de’ Rossi. (moderno)

Não estou a defender que se beba desregradamente ou de forma que possa criar sarilhos. Durante séculos, aliás milénios, o álcool foi mais do que prazer. O vinho foi fonte de calorias, de bebida saudável (beber água, sobretudo nas cidades, era um risco para a saúde, devido à poluição de imundices de toda a espécie) e fonte de prazer.

Obviamente que o tempo mudou, felizmente. Num documentário, realizado pelo sociólogo António Barreto, mostra-se que em 1979 havia crianças, na Fonte da Telha – nos arredores de Almada e Sesimbra – cuja dieta incluía sopas-de-cavalo-cansado. Este facto gravíssimo revela o estado de miséria que se viveu até à instauração da Democracia, mas também o modo como era visto o vinho no dia-a-dia.

O alcoolismo, com base no vinho ou outro produto, não é desejável em qualquer aspecto. Porém, há uma diferença entre alcoolismo, intoxicação e bebedeira numa farra. Se o vinho – o álcool – chegou aos nossos dias é, em grande parte, devido ao seu uso «mágico», indutor dum estado alterado de consciência.

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Teodorico, o Grande, Rei dos Ostrogodos, reinou de 475 a 526. Pintura medieval

Depois, à parte do alcoolismo, da intoxicação ou do beber até cair (binge drinking), há o civismo, substantivo que tem tanto de ébrio quanto de sóbrio. Quem quer festejar sem limite tem todo o direito de o fazer, critico se for manobrar máquinas, pondo em risco a sua vida e a dos outros, criando momentos de perigo.

Aliás, os povos do álcool – os que o têm na cultura – sabem, mais ou menos, lidar com a situação, o que não significa ausência de problemas. O National Geographic Channel transmitiu uma série de documentários acerca dos vícios e dos locais onde os tóxicos criam calamidade de saúde pública. Entre, as situações (repetidas) de crack, heroína, cocaína, analgésicos para cavalo (!!!) também apareceu o álcool – numa única situação.

palácio de Teodorico - rei dos Ostrogodos - em Ravena

Palácio de Teodorico, em Ravena – onde grandes farras, por certo, aconteceram.

Nem todas as sociedades ameríndias (possivelmente a grande maioria) conheciam o álcool a quando da chegada dos europeus. As suas defesas são ainda hoje frágeis, em algumas regiões. Em algumas zonas remotas do Alasca, o consumo de álcool (destilado) equipara-se ao flagelo da heroína, como o verificado em Portugal na década de 90 do século XX. Uma garrafa de whisky em Anchorage vale mais de dez vezes nas zonas isoladas.

A moderação deve ser obrigatória. O civismo e a consciência no seu consumo deve inibir episódios de risco. Um grão-na-asa de vez em quando não é grave. Os «beatos» do vinho têm, certamente, as mesmas hipocrisias dos «beatos» doutras moralidades.